Prazer, meu nome é Beto


– Ei Beto chego o bagulho na mão do Cezar.

– Porra velho, isso não era pra chega agora, tamo sem um puto tostão.

-Se era pra chega agora ou não, isso não interessa. O que interessa é que temo que arranja grana pra busca o bagulho antes do cabeleira, se não ele busca e distribui pros parça, daí nós ficamo sem grana e na seca a semana toda.

-Então vamo tê que deita o velho Lorencio e pega a grana da aposentadoria que ele recebeu semana passada.

-Tu é loco? Nós tamo sem um cano, e de mão vazia eu não arrisco.

-O velho ta acamado já faz três dia, fico doente e não consegue mais  sai da cama. È só leva a brancona da tua mãe que nós faz o serviço na hora que a velha dele tive na igreja.

– Tu manda então, na hora da velha reza nós manda o velho encontra  São Pedro.

 O sopro do minuano, a cada inverno, trazia consigo as lembranças dos tempos de juventude do senhor Lorencio. Jovem astuto e bom de tiro, lutando ao lado dos caudilhos maragatos na revolução de 1923, quando conheceu Rosinha, uma enfermeira de campanha,  na investida contra a cidade de Pelotas em 29 de outubro do mesmo ano. A revolução lhe deu duas coisas das quais nunca se separou: Rosinha e a Colt 45, que ganhou do general Zeca Netto em reconhecimento a sua habilidade com armas de fogo. “Para um grande atirador, uma grande arma” disse o velho caudilho ao lhe entregar o presente. Levou Rosinha para casa, na capital dos sete povos, e desde então era Rosinha  na garupa do pintado e a colt 45 na guaiaca, era Rosinha sob as suas fortes  investidas em um sexo selvagem e a colt 45 embaixo do travesseiro, sempre.

A pratica leva a perfeição, verdade. A sutileza e a precisão ao usar uma chave mestra deixavam isso claro. Olharam-se com ar de “essa foi fácil” ou ver que a fechadura se abriu.  O que eles não sabiam é  que entrar na casa de um caudilho, para qualquer um, poderia ser fácil, o difícil é sair dela. O velho mantinha-se ali,sentado  na cama; janela aberta, sentindo o minuano, lua cheia; maravilhosa, dando mais vida as suas lembranças. O garoto empoleirado no pé de laranjeira a observar o velho, ficou com a missão de dar sinal no momento de entrar e de qualquer movimento do velho, Beto continuaria ali, na porta dos fundos,  para recepcionar o sinal e enviar para o colega que faria o serviço; estrategy.  Ao sinal, adentrou  a casa e seguiu em direção ao quarto, o gato murisco de Rosinha lanchava despreocupado os restos de comida nos pratos sobre a pia até o momento que é surpreendido pelo vulto, movendo-se  pela casa com a sutileza de um fantasma, o murisco pulou assustado, deixando como rastro os estilhaços de louça pelo chão. O barulho deixou o velho caudilho atento, sinal de alerta. Astuto, a revolução lhe ensinou esses “detalhes”. Levanta o travesseiro; colt nas mãos. O garoto no pé de laranjeira assovia com destreza, assustado ao ver a arma, pula da árvore e corre. Era tarde, Lorencio não deixaria passar, questão de honra. Depois de seis décadas, recebendo o carinho em cada manutenção preventiva, a colt voltaria à ativa. Com muito esforço, chega até a porta do quarto. O garoto, com a faca na mão, corre como nunca correra antes. Um tiro, sangue e terra se misturam. Beto fica enroscado na grade ao tentar pular para fora do território inimigo, já não tem mais perdão. Um segundo tiro, agora em Beto, na cabeça, certeiro. Beto continua pendurado na grade. O sangue, que não pára de escorrer, vai pagar o seu perdão.  

A senhora Gonzáles chega logo implorando para ver o filho. A enfermeira, com a tatuagem de um anjo segurando um tridente desenhado no pescoço, lhe impede de entrar; é a sala de cirurgia. Em um caso desses é necessário uma cirurgia de emergência. As lágrimas descem em sua face. Pergunta-se em que errou. Sempre fora uma fiel aos preceitos da religião, uma crente fervorosa. Sonhava ver o filho falando de Deus, intitulado pastor. Sempre fizera tudo que estava ao seu alcance para que isso acontecesse. Desde que o marido desapareceu no mundo ela mantinha-se trabalhando em duas casas de família para dar melhores condições para o filho ir à escola, ser educado. Em casa ela falava de Deus e como era perfeito tudo que ele criou, do amor ao próximo, de esperança, da importância das pessoas, do valor da vida, ensinava tudo que sabia sobre a bíblia. Desde pequeno o garoto ia à igreja, tinha a vocação. Ela, todas as noites, orava com muita fé para seu Deus. Em muitas noites passavam minutos, horas, madrugada adentro falando com Ele, com um único propósito: a educação do filho. Temia desde sempre que acontecesse o que estava acontecendo naquele momento. Tentou achar uma explicação para o acontecido, a noite demoraria a passar.

  O coração do seu filho era um solo fértil preparado pelas mãos do criador, onde ela plantava as sementes de árvores que dariam bons frutos. O que ela não havia entendido é que esse solo fértil estava exposto, também, a influência do meio, do vento que trazia sementes que não eram convenientes, das pessoas que semeavam naquele solo sementes que nem elas mesmas sabiam qual era o fruto. A sociedade, aquela que mais  se importa com a logomarca que carrega no tênis que com os seres humanos, age como pássaros defecando  sementes de plantas dos maus frutos que crescem rapidamente sufocando, impedindo o crescimento das boas plantas.

Amanheceu o dia, o garoto já está no quarto da unidade de tratamento intensivo, inconsciente. Gonzáles recebe a noticia: a bala ficou alojada entre o crânio e o lobo central; ira sobreviver, com algumas seqüelas. È convidada a entrar no quarto. Ri e chora ao mesmo tempo, beija o queixo do garoto, a única parte que não estava enrolada com curativos, eufórica, agradece a Deus por mais uma chance para o seu garoto. Passa minutos e ela continua ali, inerte, observando o filho; agradecida. A imagem do filho naquelas condições a fez entender o quanto o ser humano é frágil e dependente de Deus e de outras pessoas.

 

O dia de natal amanheceu cinzento. Para Gonzáles o dia cinzento ou ensolarado não fazia diferença, o que importava era o seu estado de espírito: ensolarado, alegre, eufórico. Seu garoto estaria em casa no final do dia, recuperado.  

-Bom dia dona Gonzáles.  Como está hoje, ansiosa?- Perguntou a enfermeira da tatuagem.

– Você não imagina o quanto. Graças a Deus, meu menino vai pra casa.

Depois de cinco meses entrando e saindo daquele hospital, não havia quem não a conhecesse, não a admirasse.

Ao entrar no quarto havia algo estranho, alguém estranho. Homens de farda, eram dois.  Seu garoto entre eles, cabeça baixa, algemado.

– Sra Gonzáles, seu filho terá que ir conosco. Terá que ficar detido no CDMI, Centro de Detenção de Menores Infratores, até o julgamento.

– Tirem as mãos dele seus infames, vocês não têm o direito. Vocês não entendem minha dor? Não tem filhos, mães? Seus animais.

– Sra, por favor, nos entenda. Não temos o direito, temos um mandato judicial.

Ela se abraçou no filho, em lágrimas, beijou-o e falou baixinho:

 – Vou rezar por você, Deus estará com você. Eu te amo e Ele também.

O pior estaria por vir.

Logo que chegou presenciou uma rebelião. A tropa de choque chegou para conter os adolescentes. Fecharam o cerco em torno do grupo que deu inicio ao movimento. Os garotos pareciam ratos tentando escapar de uma gaiola, sendo espancados; dor. Um garoto, ainda mais jovem que ele, é morto dentro do cerco. É nesse momento que se pergunta o quanto vale a vida. O garoto morto fora retirado do local enrolado em um saco preto, como lixo. Nesse momento sua pergunta foi respondida. Podemos escolher entre ser apenas um saco de ossos, água e proteínas movendo-se pelo mundo em busca do nada, e valendo nada, ou darmos a nós mesmos o devido valor, cumprindo com o nosso dever de seres humanos racionais, buscando encontrar o nosso lugar em meio aos que se importam com o próximo e valorizam a sabedoria.

Os dias passavam lentos, tristes. Beto lembrava da mãe, do amigo morto no assalto. Repensava sua vida. O CDMI o fez mudar para melhor a forma de ver o mundo, o que não acontece com todos. No dia mais triste desde que chegara ao Centro de Detenção, quando fora abusado sexualmente, entendeu o quanto era perfeito o criador e sua obra, deu valor aos opostos, a dualidade na criação, ao homem e a mulher. Nos últimos dias da estadia compreendeu o valor da amizade ao ser protegido de mais um abuso. Já era inverno novamente, aconteceu o julgamento. Liberdade.

A Sra. Gonzáles abraça o filho, ambos choram como crianças. Sentem-se envolvidos por algo além do que compreendem. Tudo será diferente.

Sra. Gonzáles se emociona ao ver o filho ensinado a palavra de seu Deus, as lágrimas descem em sua face mais uma vez.

– Vovó, vovó por que está chorando?

Ela não responde, apenas dá um forte abraço na neta, que acabava de completar quatro anos.

Sofia não entende aquele ato da vovó; talvez um dia.

Ao chegar em casa naquela noite Sra. Gonzáles entende algo importante. “Para que um grande sonho se realize, muitas vezes, é necessário um grande sacrifício”. Beto brinca com Sofia no balanço. Nesse momento sopra o minuano, trazendo consigo as lembranças de um tempo…

1 Resposta to “Prazer, meu nome é Beto”


  1. 1 Rosa Maria Santos 21 de Abril de 2009 às 8:34 pm

    Tu mostraste uma realidade cruel, muito cruel e verdadeira que esta escancarada na nossa frente todos os dias com nossos jovens, e colocaste de uma forma muito criativa, objetiva.
    Realmente uma narrativa muito boa, ótima mesmo.
    Parabéns meu filho.
    Continue escrevendo sempre, expressando tuas idéias e desenvolvendo teu raciocínio de forma fabulosa.
    Bjs


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Maicon

Estudante do terceiro semestre de Eletrônica Integrado ao Ensino Médio, indeciso, viciado em açaí com guaraná e Paulo Coelho. Filosofa com frequência frases disconexas.

Perfil por Rafaela - http://sushiteria.wordpress.com

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