Sob outros olhos


– Ai malandro, quer trocar?

     Olhei para aquele adolescente negro, sem camisa, vestindo aquele jeans azul, surrado e sujo. Ele segurava uma folha branca, que me entrega e nela leio a seguinte frase:

                           “Meus sonhos, minha luta”

-Não entendo. O que significa isso?

-Esta folha é mágica e através dela podemos trocar de vida, basta que nela você escreva as coisas mais importantes de sua existência.

Cético, usei minha bic azul para escrever duas palavras. Entrego a folha e nada acontece. É preciso acreditar. Mergulho na escuridão daqueles olhos que escondem algo além da minha compreensão ou simplesmente escondem a graça de brincar com mais um desprovido de inteligência.

Derrepente, não vejo mais as janelas daquela alma misteriosa. Agora vejo do alto, o mar, a cidade maravilhosa, o Redentor. Barracos para todos os lados, pipas coloridas e altivas. Ao fundo, de um rádio que parece estar engasgado, ouço Marcelo D2. Impossível; foi o que pensei. Perdido e desesperado, caminho apressado para encontrar algo que não sei exatamente o que é.

Aquela morena, de segunda idade e baixa estatura, respira aliviada ao me ver. Vem em minha direção, faz movimento para pegar minha mão. Não permito, estou assustado, confuso.

– Meu filho, que bom que já está aqui. Andaram te procurando, eles querem o dinheiro. Vamos, entre logo!

Em um instante estou dentro do  barraco. Há um espelho e estou refletido nele. Pele morena, jeans surrado e sujo. Agora entendo. Na base do espelho há um São Jorge, aos pés do dragão um recado:

“Bem vindo ao meu mundo

Um estrondo, a porta ao chão. Homens armados adentram o barraco. Ela me protege com seu corpo. O tambor do Taurus 38 é descarregado.Sinto o calor de seu sangue. Ela cai. Sinto o seu peso sobre mim. Fecho os olhos para fantasiar o paraíso; o inferno me encontrou. Continuo inerte, passa o tempo, cai a noite. O corpo está gelado, tal como meu espírito. Quero fugir, chorar, voltar no tempo. Corro para fora. Já posso ver a cidade e o redentor de braços abertos. Há esperança. Estou determinado. Quero voltar ao meu mundo, a minha Pasárgada, a minha Ítaca.

Ao andar pelas ruelas vejo meninos de AK-47 na mão, fico ainda mais aterrorizado. Em minha pasárgada esses mesmos meninos levariam nas mãos livros de física, história ou violinos, violões, saxofones. Ouço tiros, o caveirão chegou; homens de preto. Em Ítaca homens de preto são protagonistas de MIB protegendo o planeta de invasões alienígenas. Aqui homens de preto são os homens do BOPE colocando faca na caveira. Em Ìtaca meninos estouram foguetes para São João, nas festas juninas, ou para comemorar a vitória do time. Aqui esses meninos são fogueteiros e estourar foguetes é dever, é missão. Vejo meninas expondo seus corpos para venda, como em um armazém humano. Lembro que em minha Pasárgada meninas não se vendem. Em minha pasárgada meninas são conquistadas com flores vermelhas.

Mais tiros, muitos homens de farda.  A M16 do homem de boina está apontada para minha cabeça. Não me importo. Já não consigo discernir vida e morte, uma pessoa e outra, santos ou culpados. Sei apenas de uma coisa; quero voltar ao meu mundo, a minha pasárgada, a minha Ítaca. O som final. A rajada repulsa nossos corpos.

Vejo a luz. Minha mãe entra no quarto para me acordar. Está na hora de ir à aula, estudar, ver os amigos, falar coisas sem sentindo, rir. Viver meu mundo. Ao servir o café lembro do sonho, do garoto, da mãe, da minha covardia e, principalmente, do Redentor que está tão perto e não os viu.

 

 

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Maicon

Estudante do terceiro semestre de Eletrônica Integrado ao Ensino Médio, indeciso, viciado em açaí com guaraná e Paulo Coelho. Filosofa com frequência frases disconexas.

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